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Por José Carlos Fernandes


Cheung durante a montagem da exposição em Curitiba: processo artesanal.

Cada vez que anuncia uma nova empreitada, a escultora chinesa Maria Cheung, 44, radicada em Foz do Iguaçu, deixa os que estão a sua volta de sobreaviso. Foi assim desde que começou a se firmar no circuito de artes plásticas do estado, no final dos anos 90. O motivo que faz com que tantos olhares se fixem nesta produção não se limita a uma mera curiosidade, dada a origem estrangeira da artista ou a dimensão quase sempre monumental das instalações que assina.

Maria, oriunda de uma cultura de silêncio e aniquilamento da mulher, faz uma arte que contraria heroicamente qualquer sorte de barbárie. E realiza tudo isso sem que em nenhum momento pareça estar usando sua biografia para chocar ou fazer bonito nas galerias e salões – espaços que com uma certa facilidade se rendem às idiossincrasias e ao efeito cosmético que as histórias pessoais tendem a provocar.

Curiosamente, parece ter sido da própria herança oriental da qual se distancia que Cheung retira um dos ensinamentos que dão uma grande maturidade a seu trabalho: o senso de coletividade. Logo de seu surgimento, a artista costumava produzir extensas séries em que pés moldados em cerâmicas eram acumulados em sacos plásticos, cestas de ovos, colunas vazadas. A mensagem era como uma bala enviada por um atirador de elite: certeira. Estavam ali, naquelas formas que se repetiam, as histórias de milhares de chinesas que tiveram os pés mutilados para satisfazer a um fetiche masculino.

Claro, aquele fato não estava na biografia de Maria, que chegou ao Brasil com sete anos de idade, se aculturou com uma velocidade meteórica, cursou uma faculdade e soube de “ouvir falar” as torturas a que eram submetidas suas antepassadas. Distante no tempo, contudo, as obras não perderam a força nem escorregaram na artificialidade. Graças a um simples detalhe: ao moldar pezinhos semelhantes aos que estiveram apertados em tamancos de madeira, Cheung se propôs a uma arqueologia do sofrimento feminino, lembrando que cada mulher carrega na pele certas informações, não importando o quanto seus olhos sejam puxados. O resultado tinha a estranheza das melhores e das piores coisas da vida: sedução com amargor; beleza com horror.

Hoje, quando abrir a mostra Fogo na Boca, na Sala Arte, Design & Cia. da UFPR, Maria Cheung estará dando mais um exemplo de até onde pode chegar sua habilidade em lidar com as contradições humanas. Em vez da imagem dos pés, sua matéria-prima agora são pedras – em especial brita, cimento e tijolo – elementos com os quais se remete à idéia de solidez, de predestinação e de perenidade. De tudo o que vai, as pedras são o que ficam para contar a história.

Ao acomodar esteles elementos em grandes círculos, sempre acompanhados de uma "boca" no centro, a artista forma crateras, entradas de vulcões, precipícios – como se estivesse convidando a entrar no túnel, descobrir o que se esconde por trás dos destroços. Nas palavras de Raul Córdula, que apresenta a exposição, “estes círculos de pedras são entradas para o mundo oculto da rocha (...) que nos lembra sempre que a matéria é tão eterna quanto o espírito”.

Se para meio entendedor meia palavra basta, não é nada difícil deduzir que da memória dos pés para a memória das pedras, outra coisa Cheung não faz senão dar mais um passo em direção ao outro, que é feito das mesmas coisas do que ela e a quem se dirige sempre com reverência. Sua arte é tão simples como isso.

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